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TRECHO DE QUERIDA CIÊNCIA | CURIOSIDADES (O CORAÇÃO ME REVIRA A CABEÇA)

O texto a seguir é a segunda parte da publicação presente no blog da sobinfluencia, clique aqui para: ler primeiro trecho.


Querida ciência e outras histórias, de Katherine McKittrick, é um livro que reimagina a própria ideia de conhecimento a partir das experiências e invenções da vida negra. Reunindo ensaios que atravessam teoria, música, geografia e poesia, McKittrick propõe uma “ciência inquieta”, indisciplinada e viva — uma prática de saber que recusa o olhar colonial e celebra outras formas de pensar e sentir o mundo. A edição brasileira, realizada em parceria entre sobinfluencia edições e raiz imaginária, está com campanha de financiamento coletivo aberta, e o apoio dos leitores é essencial para tornar possível a publicação dessa obra fundamental do pensamento radical negro contemporâneo.


O título do primeiro capítulo que se segue, Curiosidades (O coração me revira a cabeça), anuncia o tom visceral e inventivo que percorre todo o livro.


Estamos com a campanha de financiamento coletivo do livro aberta e adoraríamos contar com a sua colaboração para materializarmos essa obra. Confira as recompensas e nos ajude a publicar o livro nessa campanha coletiva: apoiar a campanha.



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Confira o trecho abaixo.


HISTÓRIA

As ideias e curiosidades reunidas em Querida ciência são agrupadas e apresentadas como histórias. Contar, compartilhar, ouvir e escutar histórias é ato relacional e interdisciplinar que é animado por todo tipo de pessoas, lugares,

dispositivos, narrativas, indagações teóricas, enredos. O processo é sustentado pela invenção e pelo ato de se maravilhar. A história não tem respostas. As histórias oferecem uma relacionalidade estética que se baseia na dinâmica de criar-narrar-ouvir-escutar-ler-e-às-vezes-nem-ouvir. As histórias não oferecem contos lúcidos ou respostas, em vez disso, eles sinalizam maneiras de viver em um mundo que nega a humanidade negra (ou, mais apropriadamente, as histórias sinalizam formas da vivacidade negra). A própria história-texto, lida ou em voz alta ou silenciosamente, é uma marca da vida e da vivência negra que narra os destroços e as listas e as pistas de dança e a perda e o amor e os rumores e as lições e os corações partidos. Elas incitam. A história não apenas descreve, ela exige representação fora de si mesma. Na verdade, a história não pode ser contada sem nossa disposição para imaginar o que ela não pode contar. A história pede que vivamos com o que não pode ser explicado e vivamos com pistas inexplicáveis ​​e letramentos diaspóricos, em vez de resmas e resmas de evidências positivistas. A história abre a porta para a curiosidade, as resmas de evidências se dissipam com precisão criativa à medida que contamos o mundo de forma diferente. A história pede que convivamos com o quão difícil e frustrante é conhecer o diferente. (E algumas coisas podemos guardar para nós mesmos. Eles não podem ter tudo. Parem a autópsia dela.) Eles não podem ter tudo.

Apresento Querida ciência como uma série de histórias que fundamentam o trabalho metodológico insurgente que é compartilhar ideias em um mundo hostil. Compartilhar pode ser desconfortável e aterrorizante, mas nossas histórias, mundos e modos negros de ser podem, em parte, romper o peso pesado da despossessão e da perda. Nossas histórias compartilhadas dos mundos e modos negros de ser rompem com o peso da despossessão e da perda, porque essas narrativas (músicas, poemas, conversas, teorias, debates, memórias, artes, ativações, curiosidades) estão impregnadas com todos os tipos de pistas e resistências libertadoras (PFUnk/F.U.N.K.). Compartilhar, portanto, não é entendido como um ato de divulgação, mas sim enquanto colaboração e formas colaborativas de viabilizar e engendrar lutas. Como uma coleção de histórias, Querida ciência também entende a teoria como uma forma de contá-las. Histórias e narrativas revelam o trabalho fictício da teoria. Espero que esse movimento, pelo menos momentaneamente, exponha as complexidades do trabalho acadêmico. Espero que essa abordagem, ainda que momentaneamente, revele as complexidades do trabalho acadêmico, onde a busca por fatos, a experimentação, a análise e o estudo sejam reconhecidos como narrativa, enredo, relato e invenções incompletas e não somente como tratados imparciais. Como história, a teoria é apresentada como conhecimento fictício e insiste que a imaginação negra é necessária para a curiosidade e o estudo analítico. Histórias são: teoria, dança, poema, som, música, geografia, afeto, fotografia, pintura, escultura e muito mais. Talvez as histórias sejam uma forma de expressar e se apaixonar pela vida negra. Talvez contar histórias disfarce nossa queda.

Kevin Young oferece uma rica análise das histórias negras, do ato de contar e criar narrativas. Ele descreve como as histórias negras podem ser o ato de se manter algo, alguém ou algum lugar escondido (desejo, amor, história incompleta, o que realmente importa, comunidade). Ele também aborda como a prática de distorcer histórias e narrativas (mentir, falsificar, remapear, recodificar, forjar) subverte, recusa e resiste ao racismo. Assim, o ato de contar e a própria história em si se entrelaçam, para oferecer não um conto descritivo, mas uma lição estratégica na e para a vida negra. Com isso em mente: o conteúdo da história é uma lição (você, nós, recodificamos e forjamos e inventamos, é assim que vivemos, eu guardarei seu segredo); o ato de ensinar e contar a história é colaborativo (vou compartilhar isso com você, ser coautor disso com você e viver essa vida com você, vou lhe contar o meu segredo); os conteúdos da história são multifacetados e interdisciplinares (personagens, enredos, reviravoltas, metáforas, códigos inexplicáveis, lugares, segredos, conotações, aprendizados e falações). A lição, o falar, os conteúdos, são modos de vida (maneiras de ser). Também as histórias, escreve Dina Georgis, têm a capacidade de nos mover afetivamente e, ao mesmo tempo, incitar uma prática de escuta que “não se desprende nem quer dominar o que vê e ouve”. 

Se a função das histórias é convidar o leitor-espectador-interlocutor-ouvinte a sentir, responder e emocionar-se, elas também, lembra Ruth Wilson Gilmore, estabelecem poderosos alinhamentos (provisórios e não) que são colocados à disposição para e com os entes queridos. Gilmore mostra como a utilização de vários dispositivos narrativos e a leitura de materiais (fotocópias, panfletos, boletins, escrituras, estatísticas, desenhos, anúncios, gráficos, teorias, documentos e casos jurídicos) engendram práticas de solidariedade e colaboração que funcionam dentro das geografias de libertação existentes e imaginam novas. As histórias, como método interdisciplinar, é assim encarregada de imensas e esperançosas possibilidades. As histórias são a prática da vida negra. Com e por amor. Dessa forma, e como metodologia interdisciplinar, as histórias – teóricas, criativas, rítmicas, habilidosas, secretas, compartilhadas, baseadas na prática – são um verbo-atividade que convida ao engajamento, à curiosidade, à colaboração.



SIMULTANEIDADE

Sylvia Wynter escreve que somos uma “espécie contadora de histórias” e observa que nossas histórias – especialmente as das nossas origens – têm um impacto em nossos comportamentos neurobiológicos e fisiológicos. Suas observações chamam a atenção tanto para as ciências naturais quanto para a interdisciplinaridade, enfatizando uma conexão dinâmica entre narrativa e biologia (as histórias têm a capacidade de nos mover). Além de contestar um gênero teleológico-biocêntrico do humano, o dinamismo entre biologia e narrativa endossa as metodologias negras apontadas acima: ciência e história não são distintas, em vez disso, nós conhecemos, lemos, criamos e sentimos ciência e história simultaneamente. Ou seja, nós contamos e sentimos histórias (em nossos corações), e esse contar-sentir conta-sente os empíricos da vida negra. Lendo através de nossas curiosidades, as histórias e a imaginação são testemunhos fundamentados na expressão material da vida negra. As histórias têm componentes corporais. E as histórias fazem lugar. Isso significa que os recursos metafóricos, alegóricos, simbólicos e outros que moldam as histórias também nos movem e criam lugares. Esses recursos narrativos, tão densos e intricados nos estudos negros, exigem pensar sobre seus próprios fundamentos interdisciplinares para além de um modelo cumulativo. 

Conceituar histórias e recursos narrativos associados a locais extraliterários (lugar, corpo, casa, por exemplo) é uma prática de leitura interdisciplinar-interseccional que entrelaça o material e o metafórico. Aqui o trabalho de Neil Smith e Cindi Katz é útil. Ambos nos pedem para pensar sobre as maneiras como diferentes tipos e termos geográficos – espaço, localização, posição, mapeamento e assim por diante – são frequentemente utilizados sem considerar a política que os subscreve. Especificamente, o trabalho material, concreto e fundamentado do espaço físico-material desaparece em algumas teorias que recorrem a conceitos de espaço e espacialidade. Um enunciado de pesquisa como “vou mapear os sentimentos das trabalhadoras domésticas racializadas e descobrir seus espaços de confinamento” revela claramente metáforas espaciais problemáticas que surgem e adotam o raciocínio colonial. Conceituar certos termos geográficos dessa maneira também reifica o absolutismo do espaço e o lança como um recipiente vazio, naturalizando assim geografias desiguais e suas consequentes desigualdades sociais. Apoiar-se fortemente em conceitos metafóricos gera o risco de fixar identidades sociais porque apresenta ostensivamente um “mundo flutuante de ideias” que simplesmente paira ao nosso redor. Esse tipo de perspectiva remove os atores sociais da produção de espaço e outras infraestruturas. Este não é um chamado para desconsiderar as metáforas, mas, em vez disso, um apelo para levar a sério como elas podem ser necessariamente esclarecedoras, além de estruturadas por e através do complexo fundamento da vida negra – como extraliterário-narrado-material-metafórico-interdisciplinar-dinâmico-curioso-cientificamente-criativo (sentimento). Em vez de desconsiderar a metáfora, nós convivemos com ela. 

Pensar na interação interdisciplinar entre narrativa e mundos materiais é especialmente proveitoso nos estudos negros, porque nossos locais analíticos e nossa individualidade são frequentemente reduzidos a metáforas, analogias, tropos e símbolos. Tomando emprestado de Hortense Spillers, as pessoas são, em muitos casos, concebidas por meio de uma “pressuposição mítica”. O que acontece quando nós, pessoas negras, somos lidas ou analisadas ​​como pura metáfora? E que tipo de metáforas somos? Suspeito que, em alguns casos, estamos metaforicamente não vivendo. Em termos de geografia, nosso senso de lugar é frequentemente pré-conceitualizado como morto e moribundo. Essa ausência-de-vida vai muito além da morte e da letalidade, indo em direção à extinção. Os espaços mortos estão intrinsecamente ligados aos roteiros desumanizantes – eles dependem um do outro. Não se pode ter (e descartar) a “rainha do bem-estar” sem (desprezar e expulsá-la das) infraestruturas indesejáveis que a cercam. Ao mesmo tempo, as geografias negras são frequentemente descritas por meio de metáforas: as geografias negras pós-escravidão são descritas como fugitivas, subterrâneas, maroons. As geografias negras do passado-presente são descritas como inexistentes, marginais, tumulares, uterinas, aquáticas, ocultas, zonas-de-não-ser. Muitas vezes (embora nem sempre!) essas metáforas são desvinculadas de suas bases materiais ou históricas, o que significa que a violência racial corre o risco de ser representada e/ou lida como figurativa (a ideia geográfica é abstraída de suas bases materiais e experienciais e corporificadas: a fuga é abstraída das condições materiais e intelectuais que incitaram cada forma diferente de escape, como se a fuga do passado fosse [antecipa precisamente] a fuga presente). Particularmente assustadoras são as sobreposições entre a morte e a metáfora – que destrói tudo o que somos e aniquila nosso senso de lugar. É precisamente por isso que prestar atenção à materialidade da história negra é importante. Não podemos nos politizar coletivamente sem abordar como o tropo racista e o espaço absoluto estão trabalhando correlatamente contra a vida negra. Parte de nossa tarefa intelectual é, então, talvez nos reconectar com a materialidade de nossos mundos analíticos. Parte de nossa tarefa é ler com cuidado e, quando necessário, lidar com a materialidade da metáfora. 

Vale a pena repetir, então, que isso não é um pedido para abandonar as metáforas. Precisamos delas! As metáforas oferecem um futuro (entrelaçado material e imaginado) que ainda não chegou e que estamos vivendo e o que já atravessamos. As metáforas são “andaimes observacionais”. Elas funcionam para mapear radicalmente locais ​​(entrelaçado material e imaginado) tangíveis de luta, libertação e alegria! As metáforas nos movem. Mas metáforas não são apenas metafóricas. Elas se concretizam. Isso significa que – se acreditarmos nas histórias que contamos e compartilhamos – os dispositivos metafóricos que usamos para pensar a vida negra sinalizam práticas de libertação (palpáveis, teóricas, imaginárias) que são outras-possíveis e já estão aqui (e ali).


COLAPSO 

A tarefa é, acredito, entrar em contato com a materialidade dos nossos mundos analíticos, chamar a atenção para como os estudos negros pensam através de uma variedade de lugares, tempos, gêneros, textos, sombras, grooves, tudo marcado pelo letramento diaspórico, e coletivamente pensando-sabendo-vivendo a vida negra como curiosa, estudiosa e fundamentada. A analítica, enquanto narrativa, nos permite aprender e compartilhar, e estar em contato, sem necessariamente saber totalmente. Assim, enquanto lamentamos as persistentes violências raciais; enquanto somos esmurrados por memórias daqueles que perdemos; enquanto arquivamos os mais brutais castigos; enquanto somos sobrecarregados pela perda dela, deles, repetidamente, e de novo nós a conhecíamos e não a conhecíamos e não sabíamos o nome delas até que aconteceu (não sabíamos o nome dele até que ele partiu, eu não sabia o seu nome, não tinha como saber, encontrei o seu nome, me deparei com ele só depois que ele se foi) e sentimos o coração partido e vemos isso de novo e de novo; enquanto estudamos a severidade das temporalidades da plantação (então-agora), enquanto estamos esmagados, e a perda está lá ao nosso lado; enquanto sofremos e entramos em colapso, nós não sabemos de forma absoluta. Até agora. Perdendo-a. 

Querida ciência busca contar, viver e criar uma distância ética. Espero escrever em uma distância ética ao mesmo tempo que reconheço que nossas histórias coletivas de violência racial exercem pressão sobre como vivemos o agora. Encontrei a foto dela. Espero escrever em uma distância ética e lamentar o que eu, nós, não podemos saber sem que a indústria-da-desumanização esteja envolvida nisso. Eu guardei seu segredo.


FORMA

Em Querida ciência, escrevo e estudo histórias sobre algoritmos, listas, ciência, notas de rodapé (referências, citações), plantação, consciência, grooves e batidas, poesia, geografia, metodologia e teoria. As histórias são narrativas interdisciplinares que usam e modificam a forma acadêmica para navegar as complexidades da vida intelectual negra. Este projeto compartilha o que aprendi com amigos, colegas, estudantes, músicos, escritores e poetas, e também inclui algumas fotos de textos, imagens, histórias e músicas que me ajudaram a compreender o que aprendi e o que ainda não aprendi. Este livro deve muito aos escritos de Édouard Glissant e Sylvia Wynter – dois pensadores muito diferentes que me inspiraram (como inspiraram muitos de nós) a continuar lendo e compartilhando e questionando. As histórias estão conectadas, mas podem ser lidas em qualquer ordem. São histórias sobre a vida negra. Elas partem da premissa de que a libertação é uma possibilidade já existente e inacabada e insatisfeita, enredada ao trabalho criativo, que emerge da contínua expressão colaborativa da humanidade e da vivacidade negra.

 
 
 

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